Paulo Pedro Luvumba, fevereiro 2020

 

Estamos aqui porque queremos um Estado que não mata, cuida. Estamos aqui porque queremos continuar a fazer parte e queremos continuar a colaborar na construção de uma sociedade que cuida dos seus que estão em sofrimento. A sociedade que não mata, cuida, é a sociedade da Paquita, da Marta e do Silvestre.

Na Paquita, entre muitas coisas, marcava-nos a sua simplicidade, a sua consistência, a sua forma de acolher e de se importar com os outros. Por ser humana, tinha as suas limitações, as suas imperfeições, como o medo ou a insegurança. O seu último ano de vida foi marcado pelo sofrimento, que resultava de uma doença sem cura, que limitava, roubava, incapacitava, de forma progressiva. O bem-estar cedeu o lugar à dor. O sofrimento era presença constante, de dia e de noite. A sociedade que não mata, cuida, é a sociedade do Sérgio, do Tó-Zé e da Filó. Eles são os três filhos da Paquita. De maneiras distintas, todos eles estiveram ao lado da mãe; todos eles acompanharam a mãe; todos eles cuidaram da mãe. A sociedade que cuida é tanto da Paquita, a mãe cuidada, como é do Sérgio, do Tó-Zé e da Filomena e dos seus respectivos cônjuges e filhos, que juntos, estiveram lá, cuidando.

A minha amiga Filó, a quem, por vezes, eu chamo professora Filomena, foi mais do que cuidadora informal. Continuou a ser filha e foi enfermeira, foi auxiliar, foi socorrista, foi psicóloga, foi orientadora espiritual, foi ouvinte, foi companheira na dor. A Paquita morreu aos 86 anos, numa unidade de cuidados paliativos de um hospital em Lisboa.  Morreu de mãos dadas com um dos seus filhos. E eu, que tenho a honra de ser chamado amigo por estas pessoas, juntamente com outros, estivemos presentes na retaguarda deste cuidado.

Uma sociedade que cuida é a da Marta, que morreu aos 82 anos, na cama de um hospital em Lisboa, não devido a sua doença incurável, implacável, impiedosa, mas de uma infecção hospitalar. Sim, é verdade: Nem todos os condenados à morte por doenças incuráveis, ou mesmo terminais, acabam por morrer devido a essa doença. Nos seus últimos anos, meses, dias, horas, a Marta teve ao seu lado familiares, amigos, médicos, enfermeiros, auxiliares. Esta Marta tinha por sobrenome Joaquim, tal como eu. Dela falo menos, por ser a minha avó materna. Ela morreu no meio da despedida final com a filha, assistida por médicos, que não provocaram nem apressaram a sua morte. Morreu numa sociedade que não mata, cuida.

Tal como a Paquita, a Marta também perdeu autonomia – aquela de que falam, quando advogam a necessidade da legalização da Eutanásia e do Suicídio Assistido. Mas, peço que pensemos na autonomia como a capacidade da pessoa fazer livremente escolhas morais.

Por estar em causa o exercício da individualidade dentro da viabilidade da vida em sociedade, a livre escolha moral está ligada ao bom e mau, ao certo e errado, não apenas para mim, nem apenas para alguns meus, mas para o todo. Na vida em sociedade assim construída, a liberdade nunca foi um valor isolado e absoluto. As sociedades progrediram e beneficiaram melhor os seus e o seu todo quando a liberdade era estreita e firmemente ligada com a RESPONSABILIDADE. As sociedades progrediram e beneficiaram melhor os seus e o seu todo quando a liberdade era estreita e firmemente ligada com o RESPEITO. As sociedades progrediram e beneficiaram melhor os seus e o seu todo quando a liberdade era estreita e firmemente ligada com o ALTRUÍSMO. Sim, o que queremos continuar a construir é uma sociedade viável para a vida em conjunto; por isso, vinculamos firme e estreitamente a liberdade e a responsabilidade, a liberdade e o respeito, a liberdade e o altruísmo. Fazemo-lo por sabermos que os caminhos da liberdade individual quase absoluta, que pode ser apenas um individualismo egoísta, levam-nos, de forma progressiva, mas efectiva, para uma degradação e, por fim, destruição colectiva. É isto que pretendemos evitar. É isso que não queremos.

Na vida em sociedade, por razões óbvias – tão evidentes que dispensam explicações, a vida humana, cada uma delas e todas elas, sem excepção, a vida, dizia eu, é o bem mais precioso.

O que é o exercício da liberdade com responsabilidade, respeito e altruísmo, quando em causa está o sofrimento indizível e intolerável, seja do próprio ou seja do outro?

Será a promoção de cultura de provocar e antecipar a morte de quem está em sofrimento? Queremos mesmo que a classe dos profissionais de saúde, cuidadores por vocação e formação, viva uma tal transformação em que, para além de perseguirem como objectivos o tratar e contribuir para a cura e o cuidar e acompanhar, quando não é possível a cura, passem a visar também, como um dos objectivos a concretizar, o provocar e apressar a morte dos seus pacientes que a pediram? Queremos mesmo perturbar a relação de confiança entre os profissionais de saúde, os utentes e seus familiares, abrindo espaço para a dúvida sobre acções e intenções, e as verdadeiras causas e motivações de determinadas mortes em hospital? Queremos mesmo que as pessoas em sofrimento sintam, ainda mais, que são um fardo para os outros, e que ajudariam se não continuassem por cá mais tempo?

Com os países que já legislaram no sentido que nós não queremos, é possível aprender que, uma vez estabelecida a cultura da morte do outro provocada e antecipada, o exercício da decisão livre e autónoma de alguns, sob a capa da busca de uma morte digna, descamba na privação da liberdade e autonomia de outros, os mais fracos, os mais desamparados, os mais…, os mais vulneráveis – os mais carenciados de cuidados.
A legislação também dá sinal do tipo de cultura que queremos promover. E nós queremos continuar a promoção de uma cultura de acompanhamento, cuidado e alívio. A sociedade que cuida é a sociedade que avançou dos cuidados de saúde generalizados, para conquistas tão importantes como, por exemplo, a Consulta da Dor, a Hospitalização Domiciliar, os Cuidados Continuados, o estatuto do Cuidador Informal, os Cuidados Paliativos. Queremos legislação neste sentido. Queremos políticas neste sentido. Queremos investimento neste sentido. Essa é a sociedade que queremos, que cuida, não mata.

A sociedade que cuida em vez de matar é tanto da Paquita e da Marta, como é também do Silvestre. Aos 36 anos de idade o Silvestre foi confrontado com o diagnóstico de uma doença grave, no contexto da qual, conforme ele compreendeu do que lhe foi dito, se seguiria uma progressão destrutiva, em que de 200 escapava 1, e mesmo assim com o risco de ficar em estado vegetativo. O seu sofrimento deu lugar ao desespero. Apressar e provocar a morte, que era vista como inevitável, tornou-se um desejo recorrente, que ele comunicou aos médicos, em diferentes ocasiões. Hoje passaram-se 14 anos, desde o diagnóstico e do prognóstico. Sim, o Silvestre está vivo. Conversei com ele ao telefone ainda ontem. Tem 50 anos e sente-se realizado e feliz, mesmo com as deficiências com que ficou e com as importantes limitações com que vive. É autónomo o suficiente para conduzir o seu próprio carro adaptado, coisa que um dos médicos disse que ele nunca conseguiria alcançar. Acima de tudo, o Silvestre está grato por não terem sido atendidos os seus pedidos, repetidos, para lhe anteciparem e causarem a morte. Ele reconhece que além da convicção dos médicos, que viam um mal nesse acto, foi importante haver uma lei que impedia que o seu pedido fosse atendido.

Quando o que está em causa é a vida em sociedade, a construção de um espaço comum viável para todos, e não apenas para mim, nem apenas para ti, nem apenas para alguns especiais, as leis que essa sociedade tem, ou não tem, contam, e muito. Todos sabemos que as leis não capacitam as pessoas para cuidarem, porque a legislação não promove o amor. A pessoa promove o amor. A família promove o amor. A comunidade promove o amor. Mas as leis dão um importante sinal, pois, ao apontarem para padrões, denotam aquilo que nós, como sociedade, entendemos ser o bom, o correcto, o desejável. Nós entendemos que o bom é cuidar de quem está em sofrimento, não é matar. Nós entendemos que o correcto é cuidar de quem está em sofrimento, não é matar. Nós entendemos que o desejável é cuidar de quem está em sofrimento, não é causar e apressar a sua morte, ainda que a pessoa o peça. É por isso que entendemos que a lei que agora temos, sobre a Eutanásia e o chamado Suicídio Assistido, deve ser mantida como está. Fazer esta opção é continuar a construir uma sociedade que não mata, cuida.